O Presidente da República entendeu por bem, no âmbito dos poderes que a Constituição da República lhe confere, não promulgar o diploma legal da Assembleia Nacional que concede autorização legislativa ao Governo para proceder à revisão do Código do Processo Civil (CPC), aprovado pelo Decreto-Legislativo n.º 7/2010, de 1 de Julho, devolvendo-o ao Parlamento e solicitando uma sua nova apreciação, na expectativa da sua melhoria.
Não obstante o diploma submetido ao Presidente da República, no dia 5 de Junho de 2014, para ser promulgado como Lei, vise autorizar o Governo a corrigir as incongruências, contradições, omissões e distorções conformes com a Lei n.º 55/VII/2010, de 8 de Março;
Analisado o diploma e usando da competência conferida pela Constituição da República, o Presidente da República decidiu pela sua não promulgação, com os seguintes fundamentos:
- Discordâncias de fundo, relativamente ao seu conteúdo, que inviabilizam a sua promulgação;
- Risco de afectar gravemente os direitos dos cidadãos expressamente garantidos na Constituição da República.
- Senão vejamos:
Na proposta do diploma legislativo autoriza-se o Governo a consagrar no Código de Processo Civil a presunção de que se destinam à realização de utilidade pública os activos do Tesouro Público em caixa ou depositados em instituição pública bancária (artigo 2º, n.º 43). Com esta presunção legal, os referidos activos do Tesouro Público ficam afastados da penhora no âmbito de um processo de execução contra o Estado;
- O afastamento desta presunção legal caberia ao credor, resultando numa missão quase impossível para um cidadão normal: fazer a prova de que os activos em causa não são destinados a fins de utilidade pública;
- É facto real que activos do Tesouro em caixa ou depositados em instituição pública bancária destinam-se necessariamente a fazer face às obrigações do Estado, e, entre elas, ao dever do Estado de pagar ou de indemnizar pelo não cumprimento das suas obrigações, designadamente as resultantes de violação contratual;
- Quando o Estado é executado num processo judicial (de execução), o credor deve ter acesso aos meios necessários para recuperar o seu crédito, sob pena de ficar sem direito ao referido crédito;
- Naturalmente que temos sempre de fazer um equilíbrio entre o interesse do Estado na realização do fim público e o interesse particular na recuperação de um crédito. Ora, o actual regime constante do Código de Processo Civil já faz esse equilíbrio, definindo os bens absolutamente impenhoráveis e os bens relativamente impenhoráveis. Fazer acrescer ao elenco dos bens (praticamente impenhoráveis) os activos do Tesouro Público, activos esses que são constituídos pelas receitas do Estado, é afirmar que as dívidas do Estado não podem ser liquidadas pelas receitas que o mesmo Estado arrecada.
- Ciente de que os activos do Tesouro Público em caixa ou depositados em instituição pública bancária servem precisamente para o Estado fazer face às suas obrigações e, entre elas, a de pagar a quem deve, porém, o sistema ora proposto, que contraria os factos reais, impondo ao credor a obrigação de vir provar que o montante que deve ser penhorado para pagar o seu crédito não se destina a um fim de utilidade pública, constitui uma tarefa impossível.
- Consequentemente, estaremos a criar um sistema que põe em causa o PRINCÍPIO DA IGUALDADE consagrado no artigo 24º da CRCV, pois o Estado e os seus agentes estariam mais protegidos dos que os outros cidadãos no caso de incumprimento das suas obrigações, mesmo nos casos em que a fonte da obrigação é contratual e pressupõe naturalmente a igualdade das partes.
- DIFICULTAR OS MEIOS DE EFECTIVAR O DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO É UMA FORMA DE AFASTAR, OU PELO MENOS COARCTAR, ESSE DIREITO.
- Considera-se que a sistemática processual tem de estar em consonância com os ditames constitucionais, sob pena de se obter baixa eficácia nos imperativos constitucionais.
- Por outro lado, entende-se, também, que o sistema proposto de presunção de que os activos do Tesouro Público em caixa ou depositados em instituição pública bancária se destinam a utilidade pública, obstando, assim, à sua penhorabilidade, irá contribuir para aumentar a morosidade nos processos de execução contra o Estado, obrigando o credor a ter que nomear outros bens à penhora que, como se sabe, leva a um procedimento que exige mais actos até chegar à fase final de pagamento.
- Para além disso, o sistema ora proposto levanta dúvidas quanto à possível VIOLAÇÃO DO DIREITO DE EXIGIR INDEMNIZAÇÃO pelos prejuízos causados pela VIOLAÇÃO DOS DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS(art.º 20.º, n.º 2) e do direito a ser indemnizado pelos danos resultantes da violação dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, por acção ou omissão de agentes públicos, praticados no exercício de funções (e por causa delas) – art.º 245.º, alínea g) -, ambos da CRCV.
- Efectivamente, o sistema hoje em vigor logra proteger com muita razoabilidade o interesse público, uma vez que o Estado, perante a penhora dos activos do Tesouro Público em caixa ou depositados em instituição pública bancária, sempre pode socorrer-se dos meios de prova disponíveis para demonstrar fundamente que os activos em causa estão afectos a fins de utilidade pública.
Assim, pelo exposto, o Presidente da República devolve o presente diploma à Assembleia Nacional, sem promulgar, solicitando a sua nova apreciação.