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Discurso proferido por sua Excelência o Presidente da República, Dr. Jorge Carlos de Almeida Fonseca, por ocasião da Abertura do Ano Judicial
Cidade da Praia, 17 de Outubro de 2014
EXCELÊNCIAS,
Senhor Presidente do STJ,
Senhor Ministro da Justiça,
Senhora Ministra da Administração Interna,
Senhoras e Senhores Deputados à AN,
Senhor Presidente do Tribunal de Contas,
Senhora Presidente do CSMJ,
Senhor PGR
Senhor Provedor de Justiça
Senhora Bastonária da OACV,
Senhor CCC da Presidência da República,
Senhoras e Senhores Embaixadores e Representantes de Organismos internacionais,
Antigos Presidentes do STJ,
Antigos PGR’s
Antigos Bastonários da OACV,
Senhoras e Senhores Juízes Conselheiros,
Senhoras e Senhores PGR’s Adjuntos,
Senhoras e Senhores Magistrados,
Senhoras e Senhores Advogados,
Senhoras e Senhores Oficiais de Justiça,
Senhoras e Senhores Profissionais da comunicação social,
Ilustres Convidados,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Na abertura do ano judicial de 2012 afirmei que devemos estar, todos nós, orgulhosos do percurso que fizemos. No meio de tantas dificuldades que vivemos hoje, continua a fazer sentido, dizer-se que devemos estar orgulhosos do que fizemos desde a Independência, a 5 de Julho de 1975.
Isso não significa que acertámos sempre, que não cometemos erros e que não podíamos aqui e acolá fazer melhor. Cometemos erros, sim senhor, às vezes não agimos a tempo e nem procurámos a solução mais adequada para o problema num dado momento. Amiúde optamos pelo mais fácil, o mais cómodo, o mais imediato ou até o mais «popular» ou aparatoso, mas nem sempre o mais eficiente e racional, quiçá o que mais coragem exige como decisão, sobremaneira em momentos de maior complexidade ou dificuldades no plano social e político, deixando-nos levar por medidas, inclusivamente legislativas, «à flor da pele».
Mas o que fizemos para o sistema de administração da justiça, no seu conjunto, é positivo, alargámos de maneira extraordinária o acesso, investimos de forma significativa na informação jurídica, temos um número incomparavelmente superior de tribunais, de procuradorias, de magistrados, de advogados e de oficiais de justiça. Fizemos importantes reformas legislativas em matéria de organização judiciária, do processo e mesmo no domínio do direito substantivo.
Temo hoje muito mais meios de tutela jurisdicional dos nossos direitos do que aquele que tínhamos no período colonial ou nos primeiros anos da independência.
Temos tribunais que funcionam regularmente em todas as ilhas e na grande maioria dos concelhos do país.
Temos representações do Ministério Público em todas as ilhas e na grande maioria dos concelhos do país.
E temos advogados em todas as ilhas, se bem que não em número suficiente, e numa grande parte dos concelhos do país.
Devemos investir muito mais na formação, na capacitação técnica dos agentes da Justiça, mas a qualidade das decisões tem vindo a melhorar progressivamente.
Mesmo assim, apesar do esforço e dos investimentos, temos a consciência clara de que a sociedade cabo-verdiana não está plenamente satisfeita com o desempenho do sistema de administração, que ela espera ainda muito mais. E é legítimo o descontentamento, face aos resultados, ao exame do estado da justiça.
É evidente – e não me canso de o repetir – que a avaliação que os cidadãos fazem da justiça não tem apenas como objecto o desempenho dos tribunais e nem apenas o desempenho do Ministério Público, mas tem a ver, também, com a própria actuação das polícias e até de outras entidades administrativas. Tem a ver com a sua percepção geral de justiça e de injustiça.
Diríamos que aqui valeriam as palavras lúcidas e certeiras de Amartya Sen, segundo as quais «O que nos toca, e é razoável que o faça, não é o darmo-nos conta de que o mundo fica aquém de um estado de completa justiça – coisa de que poucos têm esperança -, mas o facto de que, à nossa volta existam injustiças manifestamente remediáveis e que temos vontade de eliminar». Ou, ainda, de forma mais lapidar, o dito por Lear a Gloucester, o cego: «Um homem pode ver como vai este mundo mesmo não tendo olhos».
A falta de resposta policial rápida a uma «afronta», a ausência da polícia nas situações de conflito grave, a demora na apresentação de resultados, constituem factores de preocupação legítima e constante dos cidadãos.
Na verdade, causa profunda perturbação social a falta de comparência rápida da polícia a um pedido de socorro por parte de um cidadão violentado ou sob ameaça de lesão grave. Esta incapacidade de intervenção rápida na protecção de um cidadão preocupa bastante e reforça o sentimento de insegurança.
Intervir para evitar a lesão tem muito menos custos e é mais eficaz do que reprimir o ilícito praticado.
Precisamos de um outro nível de esforço, de mais e melhores meios, é certo, mas também de uma outra atitude das instituições e dos agentes face ao pedido de intervenção das autoridades. A demora, a ausência, o descaso e as desculpas frouxas não podem continuar a ser uma prática quotidiana.
Estou certo de que esta questão vai merecer uma atenção especial das autoridades cabo-verdianas,.
Mas os cidadãos, ao criticarem a «justiça», também às vezes estão a manifestar o seu descontentamento para com a Administração Pública. Na realidade, no caminho rumo a uma sociedade cada vez mais justa, tão ou mais importante do que conceber e efectivar um sistema de resolução de litígios adequado e eficaz, é conseguir que as entidades públicas nas suas diferentes intervenções – na escolha dos procedimentos para contratação, na gestão desses procedimentos, e nas inúmeras decisões que proferem relativamente a pretensões de empresas e cidadãos e outras entidades privadas – actuem de acordo com a Constituição, com a Lei, com critérios de justiça, de transparência e com parâmetros de racionalidade.
Apesar dos esforços e da evolução registada na Administração Pública Cabo-verdiana, que cumpre reconhecer e sublinhar, a verdade é que são frequentemente veiculadas notícias que se reportam a casos e a situações em que a actuação dos decisores é alegadamente desprovida de qualquer fundamentação ou produz resultados e efeitos injustos.
Neste quadro, o progresso dos níveis de Justiça atingidos pela sociedade Cabo-verdiana exige o aprofundamento da reforma da Administração Pública, com a finalidade de incrementar níveis de cumprimento dos princípios e regras contidos na Constituição e na Lei, sendo também importante que seja escrupulosamente observado o dever de fundamentação de todas as decisões, já que o mesmo constitui um mecanismo dissuasor de decisões injustas e um elemento facilitador de futuros arestos judiciais destinados a repor a justiça e a legalidade, quando necessário, sem falar mesmo da própria legitimação democrática da própria decisão.
Na verdade, é muito desejável que o Estado não seja ele mesmo uma grande fonte de litigiosidade!
Excelências,
Minhas senhoras e meus senhores,
Os Relatórios sobre a situação da justiça que são produzidos anualmente pelo Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) e pelo Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), e apresentados à Assembleia Nacional nos termos previstos na Constituição, são documentos essenciais neste domínio.
As estatísticas, as análises e as recomendações contidas nos Relatórios anuais desses Conselhos não podem deixar de ser consideradas, atentamente analisadas e ponderadas pelos decisores políticos.
O Relatório do CSMJ revela um aumento assinalável de processos entrados no Supremo Tribunal de Justiça, em que estão pendentes 735 causas.
Quanto aos Tribunais de Comarca, registou-se um aumento da produtividade dos mesmos, que permitiu a redução da pendência de 14.339 para 12.782 processos, mantendo-se ainda assim um elevado número de processos por decidir.
O Relatório do CSMP assinala que, apesar de se ter verificado um aumento dos processos-crime resolvidos, tal foi insuficiente para compensar o número de processos-crime entrados, razão pela qual se registou um aumento das pendências de 87.286 para 95.772 processos-crime.
Estes números permitem confirmar a sensação geral de que, apesar de todos os esforços, medidas e investimentos, Cabo Verde não tem logrado obter melhorias significativas no que tange a esta problemática.
Não sendo, reconhecidamente, um desafio fácil - pois que está sempre presente a eterna tensão entre os mecanismos de salvaguarda dos direitos dos sujeitos processuais e os imperativos de decisão justa, com o inerente consumo de tempo, de um lado, e os objectivos de eficácia e celeridade do outro -, a importância do tema impele-nos à permanente indagação de soluções que possam viabilizar um funcionamento mais ágil do aparelho da justiça.
Na linha de intervenções anteriores, reitero o meu forte apelo no sentido de se realizarem investimentos públicos que resolvam, até ao limite do possível, naturalmente, os problemas e os constrangimentos que condicionam os tribunais e as magistraturas, e que se encontram identificados nos Relatórios dos Conselhos Superiores.
Igualmente reafirmo o repto da revisão permanente do sistema, no sentido de serem progressivamente identificadas soluções – algumas delas, diga-se, já equacionadas pela comunidade jurídica - que assegurem uma maior celeridade processual.Para tal, será de constituir uma verdadeira “frente comum”, que pondere medidas de elevação dos padrões de celeridade e de eficácia do nosso Sistema de Justiça, em que participem não só os poderes políticos, como também as magistraturas e os advogados, que não podem deixar de contribuir com os subsídios de quem lida diariamente com esse Sistema.
Não querendo repetir sempre o mesmo discurso a respeito da morosidade e das suas causas, bastando dizer que, infelizmente, a realidade nesta matéria não conheceu qualquer melhoria muito relevante, aproveitaria esta ocasião para fazer mais um veemente apelo: as leis da República devem ser cumpridas, especialmente a lei maior, a Constituição da República, pois a ninguém é reconhecido o direito de escolher a parte da lei que quer cumprir, desconsiderando a outra parte.
Se todos reconhecem que temos um problema grave, que é exactamente a falta de uma cultura de legalidade, de respeito para com a lei emanada de autoridade legítima, a desconsideração pelas leis fundamentais que outorgamos, sejam elas constitucionais, de organização judiciaria ou dos estatutos do magistrados, emite sinais de efeitos devastadores para a cultura da legalidade e para a afirmação da autoridade do Estado de Direito Democrático.
Não faz sentido aprovar-se a Constituição da República e leis estruturantes em matéria de justiça que exigem maiorias reforçadas, compromissos políticos delicados, para, de seguida, não serem cumpridas, iniciando-se discussões fora da sede sobre a bondade das soluções adoptadas, enquanto não são cumpridas.
A instalação do Tribunal Constitucional vem sendo sucessivamente adiada, com argumentos que não convencem a opinião pública cabo-verdiana. É notória a falta de esforço sério na procura de um compromisso que dê cumprimento ao comando constitucional. E hoje, para além da permanente e preocupante imagem de violação da Constituição, com os seus efeitos perversos na cultura da legalidade, a falta de instalação desse Tribunal está a constituir um factor de bloqueio ao sistema de administração da justiça no seu todo. Está a ter efeitos práticos no funcionamento dos tribunais, na qualidade das decisões e na própria morosidade. Ninguém pode disso duvidar. O sistema actual está emperrado e não existe qualquer outro caminho que não seja o de cumprir a Constituição.
Não posso deixar de reflectir a este propósito que a incompreensão da função de um tribunal constitucional, num contexto político e social como é o nosso, releva, em alguma medida, de uma insuficiente cultura democrático-constitucional, a todos os níveis: do Estado e da sociedade A democratização do direito exige, pois, a democratização do Estado e da sociedade.
Também não se deu cumprimento ao comando constitucional em matéria de instalação dos tribunais de segunda instância, que impunha um prazo de três anos. Mais de quatro anos volvidos, a instalação ainda está por se fazer e nem existem sinais claros sobre uma data para pôr fim ao incumprimento constitucional. Os efeitos negativos sobre o sistema têm-se feito sentir. Temos hoje muitos juízes com emprego, mas sem trabalho, e ansiosos por trabalhar. Querem exercer as funções previstas nas leis e para as quais foram investidos no cargo, mas estão impossibilitados de o fazer.
As mesmas considerações devo também fazer a respeito da lei orgânica do Ministério Público. Na sua essência, falta fazer quase tudo. Estruturas essenciais no combate ao crime e no aumento da capacidade de resposta ainda estão por ser instaladas. O Ministério Público é o organismo do Estado titular da acção penal e representante do Estado, por isso desempenha um papel crucial no sistema. Por maior que seja a escassez dos recursos, deve ser exigido do Estado ainda um maior esforço para colmatar as insuficiências de meios que põe em causa a nobre missão do Ministério Público.
Mas no meio de muita coisa ainda por fazer, de imperativos constitucionais por cumprir, o Presidente da República não podia deixar de saudar, seriamente, a nomeação do Provedor da Justiça e a entrada em funcionamento deste importante órgão constitucional de protecção dos direitos, liberdades e garantias.
Ao Senhor Provedor de Justiça renovo os meus votos de sucesso e o meu estímulo legítimo. Iguais votos ao novo PGR, recentemente em funções. Aos cidadãos deste nosso país insto a que procurem o Provedor de Justiça sempre que sintam que os seus direitos não encontram a devida protecção.
Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
No últimos tempos, acontecimentos extremamente graves têm ocorrido na nossa sociedade e interpelam-nos sobre o rumo que estamos a seguir, obrigam-nos a olhar para trás, para os diferentes sectores da nossa sociedade, a começar pela educação, o que oferecemos aos jovens, o funcionamento do aparelho do Estado, as instituições da sociedade civil, as organizações partidárias, as pessoas e o que as motiva.
Não tenhamos receio de enfrentar a realidade, e não nos deixemos levar por interpretações convenientes, não tenhamos medo de buscar a verdade.
Entre as coisas que não podemos continuar a querer ignorar ou minimizar estão os sinais de corrupção. Repito o que tenho dito: a nossa justiça tem de estar muito atenta aos fenómenos da corrupção e tem de os enfrentar com coragem, com isenção e independência. A corrupção mina o Estado, a confiança dos cidadãos e das empresas, pelo que é desastroso para o desenvolvimento económico, para a afirmação das instituições democráticas e para a coesão social. O aproveitamento de situação de vantagem dada pelo cargo para obtenção de outras vantagens ilícitas, em detrimento do Estado e ou de terceiros, ou mesmo para proteger a própria corrupção, é crime grave e que importa combater com todas forças. Aqui também se trata de ganhar uma batalha para a legitimidade moral para perseguição criminal de todos outros delitos.
Por outro lado, é em momentos de grande comoção social que temos de ser mais firmes na defesa dos princípios que enformam o Estado de Direito Democrático pelo qual fizemos uma opção inalienável ao aprovarmos a Constituição de 92. Insistimos em que não é boa política legislar à «flor da pele», sob a pressão de acontecimentos imediatos e geradores de forte emotividade. É necessário resistir à tentação da fuga em frente para a lei para enfrentar situações complexas da vida social. Isso só leva, na maior parte das vezes, a produzir leis desnecessárias, inúteis, quando não leis... sobrepostas, leis já existentes, em vez executar medidas concretas com base em legislação já existente.
Para além disso, é necessário ter cautela na importação de soluções, métodos e procedimentos, maxime legais, já experimentados noutras latitudes e que, comprovadamente, não resolveram absolutamente nada, são zero em eficácia; e que, consequentemente, tempos depois, a solução venha a ser de novo... mais leis e mais soluções de novo destinadas a uma duvidosa eficácia.
Exmo Senhor Presidente do STJ,
Exmo Senhor Ministro da Justiça,
Exmo Senhor Procurador Geral da República,
Exma Senhora PCSMJ,
Exma Senhora Bastonária da OACV
O combate ao crime, desde a pequena criminalidade até ao chamado crime organizado exige determinação, inteligência, cooperação entre as várias polícias. Exige também mais meios técnicos e científicos, sobretudo meios de investigação criminal, recursos humanos suficientes e capacitados e um bom sistema de informação. Esse é um combate que temos de ganhar todos sob pena de ficarmos reféns do crime e seus agentes e organizações. Por isso, Todos nós temos o dever de contribuir para que tais requisitos e exigências sejam progressivamente obtidos e sempre actualizados.
E, de igual modo, todos nós temos de ter presente que, mesmo no combate ao crime, e na criação de um sistema eficiente de segurança para os cidadãos, não podemos deixar de ser cumpridores da Constituição e das leis, agindo sempre nos limites por elas permitidos ou impostos. Todos nós podemos ser emotivos, ficar comovidos, manifestar os sentimentos pessoais mais fortes e diversos – e isso será legítimo e compreensível – mas o Estado e suas instituições não podem emocionar-se, indignar-se, devem agir permanentemente, com eficácia e com base em critérios racionais e controláveis pela comunidade.
Excelências,
Minhas Senhoras e meus Senhores,
Três notas finais:
Primeira,
A quantidade de leis com que os cidadãos comuns e os operadores do Direito têm que lidar diariamente é enorme. Conhecer o direito é essencial para a preservação do princípio da legalidade e da segurança jurídica, exigências de um regime de liberdade, como o nosso. Por isso apelo ao governo que seja reforçado o acesso dos cidadãos à legislação , designadamente alargando, se possível, o acesso gratuito das pessoas ao Boletim oficial electrónico.
A segunda nota é para deixar aqui o meu agradecimento aos países e instituições internacionais que têm financiado projectos na área da justiça e na capacitação das instituições públicas e privadas que, directa ou indirectamente, trabalham nesse domínio.
A derradeira, mas não menos importante, é a manifestação séria da solidariedade institucional do Chefe de Estado – a solidariedade devida, legítima e constante – com todos os responsáveis e agentes do sistema da Justiça.
Votos de um bom ano judicial 2014/2015 e muito obrigado pela vossa atenção.