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Mensagem de Sua Excelência Dr. Jorge Carlos de Almeida Fonseca, Presidente da República,
por ocasião do dia Internacional da Abolição da Escravatura
02 de Dezembro
A escravatura é, sem sombra para dúvidas, a maior violação dos Direitos Humanos de que há memória. A sua abolição, saudada pelos humanistas e por toda a humanidade, era tida como algo irreversível e o princípio de um novo estado de coisas, onde a exploração do homem pelo homem não teria vez.
Cedo, contudo, se apercebeu que ainda não se tinha atingido o ponto de não retorno. Resquícios das relações do tipo esclavagista mantinham-se activos em várias latitudes. Aliás, o próprio processo de alforria continha no seu bojo elementos que, mais cedo ou mais tarde, levariam os escravos alforriados a se entregarem a relações de submissão como forma de sobrevivência. Como poderiam resistir fora do sistema esclavagista pessoas que conheciam um métier mas não tinham as alfaias necessárias para o seu exercício?
Com o evoluir da situação, e de forma capciosa, começaram se instalando relações de trabalho que em nada se diferenciavam do trabalho escravo: sem contrato de trabalho, sem salário, sem férias, nem licenças, sem liberdade de escolha, sem liberdade de movimento, sem nome. Voluntários devidamente algemados é o maior e o mais degradante eufemismo jamais escutado, mas era a forma como eram referenciados os indivíduos arrebanhados para trabalhar em minas, em lugares insalubres e sob o regime do chicote.
A escravatura moderna aparece-nos hoje maquilhada sob a forma de relações aparentemente lícitas, mas escondendo a velha realidade de sempre, não resistindo ao mais brando escrutínio. Servidão por conta de dívidas, casamentos forçados, exploração de crianças, são alguns, de entre muitos, exemplos de práticas de esclavagismo do nosso tempo.
Quando um casal, ou uma família inteira, se rende ao seu credor, fazendo-o senhor do seu destino, porque tem uma dívida que só cresce e que não pode amortizar, que grau de liberdade resta a tal família? E, não raras vezes, tanto a dívida inicial como o seu incessante incremento até à inadimplência são induzidas pelo credor, que se torna suserano e transforma o devedor em vassalo, reproduzindo relações do tipo medieval.
Quando aos progenitores não resta outra alternativa senão dar a filha em casamento a um homem com posses – o mais das vezes um seu “paciente” credor – terão exercido mesmo seu livre-arbítrio? Tais casamentos forçados limitam tanto a liberdade da esposa como dos respectivos pais, porque, na maioria das vezes, acabam se estabelecendo dependências intransponíveis, pela via do suprimento das suas necessidades mínimas pelo comprador da filha.
A exploração do trabalho infantil e a prostituição infantil são formas aviltantes de usar crianças para incrementar lucros e para saciar apetites baixos. Que liberdade têm esses seres indefesos diante de pessoas, para quem o lucro fácil e o prazer constituem troféus a exibir entre a escumalha amiga? Gente para quem os fins justificam os meios, que não hesitam em precondicionar a vida dos pais para que as crianças possam cair nas suas malhas maléficas, integram a classe dos esclavagistas modernos a que precisamos dar combate sem tréguas.
O Dia Internacional da Abolição da Escravatura, afinal, ainda não é um dia de festejos. Precisa ser um dia de reflexão sobre formas e vias de combate a este flagelo velho e que agora surge com vestes novas e sob uma capa de legitimidade forjada.
Em Cabo Verde, onde se pretende que existam quase quatro mil pessoas sob o jugo da escravatura moderna, por maioria de razão, a efeméride tem de servir para reflexão e, principalmente, para olhar para o lado a ver se o estudo é uma quimera ou se existem mesmo irmãos nossos privados de liberdade e forçados a trabalhar para outrem sem qualquer protecção legal. Seria mais de 1% da população em idade activa, portanto demasiada gente para escapar ao radar das autoridades e à curiosidade natural dos cabo-verdianos.
Não acredito que o nosso humanismo esteja tão anestesiado, a ponto de não nos darmos conta de uma tal aberração dentro de portas. Contudo, importa que todos, e cada um, fiquem atentos.
Fica então a convocação dos cidadãos de bem desta grande Nação para uma vigilância atenta em relação ao fenómeno da escravatura moderna e para uma disponibilidade total para participar do bom combate contra a escravatura e os esclavagistas do nosso tempo.
Liberdade e Dignidade!
Jorge Carlos De Almeida Fonseca