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Senhor presidente, onde estava no 25 de Abril de 1974?

 

Estava em Beja, no RI-3, como oficial de piquete, aspirante miliciano. Tinha sido incorporado compulsivamente no exército, ao abrigo de lei especial aplicável aos que eram chamados "politicamente suspeitos", depois de suspenso da Universidade de Coimbra (Faculdade de Direito), estava eu já no último ano da licenciatura, com 22 anos de idade. E por directivas superiores do PAIGC, enquanto militante na clandestinidade, não deveria "dar o salto", mas permanecer na tropa até novas ordens. Mas por isso estava mais ou menos por dentro do que poderia e viria a acontecer.

 

Ficheiro PDF com a entrevista em:

https://egdus4.s.cld.pt 

Leia a entrevista ionline:

http://www.ionline.pt/artigos/mundo-25-abril/presidente-cabo-verde-no-dia-25-abril-estava-oficial-dia-no-quartel-beja

 

 

 

O chefe de Estado cabo-verdiano diz que o 25 de Abril foi também, numa medida modesta, uma conquista sua

O presidente da República de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, considera que o 25 de Abril foi também, numa medida modesta, uma conquista sua. Pouco tempo antes tinha sido expulso da Universidade de Coimbra, impedido de se transferir para outra, e incorporado compulsivamente no exército, por causa da sua participação nas lutas académicas, enquanto desenvolvia actividades clandestinas no seio do PAIGC.

Senhor presidente, onde estava no 25 de Abril de 1974?

Estava em Beja, no RI-3, como oficial de piquete, aspirante miliciano. Tinha sido incorporado compulsivamente no exército, ao abrigo de lei especial aplicável aos que eram chamados "politicamente suspeitos", depois de suspenso da Universidade de Coimbra (Faculdade de Direito), estava eu já no último ano da licenciatura, com 22 anos de idade. E por directivas superiores do PAIGC, enquanto militante na clandestinidade, não deveria "dar o salto", mas permanecer na tropa até novas ordens. Mas por isso estava mais ou menos por dentro do que poderia e viria a acontecer.

Como recebeu a notícia da Revolução em Portugal? Alegria, apreensão?

Alegria, entusiasmo, concretização de uma aspiração de um jovem revolucionário. Como lhe disse, não com muita surpresa, pois tínhamos informações do que se passava em Portugal, através de conexões nossas com elementos de forças políticas portuguesas, nomeadamente do PCP, inclusivamente no interior do quartel. Tudo parecia, nos primeiros tempos, um sonho autêntico. O problema viria a ser a adaptação da luta que era clandestina a uma outra realidade, a da liberdade. Lembro-me de uma cena significativa: ia um dia com um companheiro para a distribuição de material de informação e propaganda da luta pela independência no Barreiro, e levávamos o material todo escondido... de repente demo-nos conta de que estávamos em liberdade e tais cuidados não faziam sentido. Rimo-nos, mas era o peso e a força do hábito da clandestinidade. Confesso que ainda hoje, nós que fizemos clandestinidade durante muito tempo, mantemos por vezes atitudes e gestos de clandestinos...

O que mudou na sua vida imediatamente com o 25 de Abril?

Depois de algum tempo de compasso e de discussões internas no seio da estrutura partidária em que me integrava, tinha de saber se me mantinha em Portugal ou não, se regressava a Cabo Verde, se completava então as disciplinas que me faltavam para completar a licenciatura, superada a suspensão por motivos políticos. Com o início do processo negocial PAIGC-governo provisório de Portugal, e ainda seguindo instruções que me eram dadas e que cumpríamos religiosamente, acabei por ser enviado para os EUA, para ajudar a organizar a estrutura do partido naquele país. Ali estive cerca de três meses. Depois regresso a Cabo Verde e sou enviado para Genebra como representante do "movimento de libertação nacional" - PAIGC - na Conferência das Nações Unidas sobre o direito do mar. Mais tarde trabalho no Ministério dos Negócios Estrangeiros como director-geral da Emigração e Serviços Consulares. E assim por diante, fui secretário-geral do MNE até Abril de 1979, data em que, com muitos outros, se dá a ruptura com o PAIGC, num processo ainda hoje pouco conhecido, complexo e doloroso, mas baptizado pelo regime como "fraccionismo" ou "trotskismo".

Seguiu-se um longo período de procura de espaços e de estruturas para a luta pela democratização do regime - CCPD (Círculos Cabo-Verdianos para a Democracia), LCDH (Liga Cabo-Verdiana dos Direitos Humanos)... dentro e fora do país. Entretanto eu saio de novo de Cabo Verde, completo a licenciatura em Direito, inicio estudos pós-graduação e uma carreira académica na FDL. É um tempo - 1979 a 1990 - de experiências novas de luta, de procura de junção e articulação de oposições ao regime de partido único. Chegamos aos anos 90, com a irrupção do forte e imparável movimento popular e político que desemboca na instauração da democracia.

Pode dizer-se que a sua vida ficou indelevelmente marcada pela Revolução dos capitães de Abril. Em termos políticos, o senhor foi dirigente partidário, ministro dos Negócios Estrangeiros, e é agora presidente da República...

Penso que o 25 de Abril é indiscutivelmente um marco na vida de quem o vivenciou, de quem teve o privilégio de assistir a um grandioso movimento político, no coração do último império colonial e que viria a ter profundas consequências em Portugal e nas colónias de então. Para quem, de algum modo, esteve implicado em actividades que conduziriam a esse desfecho, esse acontecimento teve um impacto muito especial. Na verdade, contrariamente aos que defendiam que nós, africanos, devíamos preocupar-nos apenas com a luta de libertação nacional e deixar os portugueses resolver os seus problemas, integrei um grupo de cabo-verdianos, outros africanos e portugueses que entendiam que as lutas de libertação nacional estavam estreitamente ligadas aos movimentos que também em Portugal se opunham ao regime colonial fascista. Diria que de facto o 25 de Abril foi também, numa medida, claro, modesta, uma conquista minha. Foi uma conquista de todos os que defenderam com firmeza os ideais de democracia, liberdade e independência dos povos. Ainda que fossem processos diferentes, entendia que a relação entre eles era muito estreita. Aliás, fui expulso da Universidade de Coimbra, impedido de me transferir para outra, e incorporado compulsivamente, ao abrigo de lei da época, no exército por causa da minha participação nas lutas académicas, enquanto desenvolvia actividades clandestinas no seio do PAIGC. Assim, os cargos políticos nos quadros partidário e do aparelho de Estado que tenho assumido são decorrências lógicas da minha trajectória política iniciada em Portugal, aos 17 anos, durante a qual tenho procurado defender invariavelmente os ideais de liberdade, independência, democracia.

Por isso, momentos marcantes como o 25 de Abril, a independência e a democratização de Cabo Verde, bem como os cargos que tenho ocupado inscrevem-se nesse percurso de pouco menos de cinco décadas.

O que correu bem e o que correu mal no pós-25 de Abril visto nos últimos dias do império colonial?

A posteriori é sempre possível avaliar aspectos que poderiam ter ocorrido de forma diferente, particularmente no que respeita a custos humanos e materiais. Mas processos que conduzem a mudanças tão radicais como as propiciadas pelo 25 de Abril - democratização de um regime fascista com várias décadas de existência, derrocada do último império colonial e emergência de vários estados independentes - muito raramente seguem roteiros lineares e são isentos de custos, por vezes muito elevados. De qualquer modo pode dizer-se que as guerras que se seguiram às independências de Angola e Moçambique, que, em nosso entender, decorrem essencialmente de processos internos desses países, podem ser apontadas como resultados (há quem possivelmente os considere quase inevitáveis) negativos de realidades muito complexas.

A grande instabilidade que reinou em Portugal a seguir ao 25 de Abril não pode ser considerada positiva.

De todo o modo, a conquista de todas as independências, sem guerras posteriores, na Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe e a democratização de Portugal são ganhos muito consideráveis.

Há quem defenda, em Portugal e mesmo em Cabo Verde, que o seu país, à semelhança de São Tomé e Príncipe, nunca deveria ter saído da esfera de influência de Portugal, dado que na génese são uma criação portuguesa. Que reflexão lhe sugere esta ideia?

Penso que há uma imprecisão de conceitos que convém clarificar. Se se entende por "esfera de influência portuguesa" a manutenção do regime colonial, é evidente que tal não tem sentido. Independentemente da grande influência portuguesa na génese de Cabo Verde, este, com outras contribuições, constituiu-se numa entidade cultural e política diferente de Portugal, específica e autónoma, e que até 1975 a ele esteve submetido. Assim, esse tipo de influência não faz sentido. Se se entende por "esfera de influência" relações especiais, privilegiadas, económicas, culturais e políticas, diria humanas, na base de interesses comuns, considero que elas já existem e podem avançar mais. Penso, inclusivamente, que é do interesse dos dois países o estreitamento e o aproveitamento, cada vez mais, dessas relações.

Começou a sua intervenção política logo após o 25 de Abril. Acompanhou de resto as negociações para a descolonização. Portugal fez uma descolonização ou abandonou precipitadamente as suas ex-colónias? Podia-se ter feito diferente e melhor na época?

Na verdade a minha actividade política iniciou-se, como referi, bem antes do 25 de Abril, creio que por volta de 1968, tinha eu 17 anos. Era uma intervenção clandestina, que viu a luz do dia com a Revolução. No que se refere à descolonização, entendo que se trata de um processo muito complexo, que teria começado aquando do início das lutas de libertação nacional, teve importância decisiva na eclosão do 25 de Abril, contribuiu para a queda do regime colonial fascista e conduziu à independência das ex-colónias. Vejo, pois, as coisas, nessa dinâmica política e histórica. Assim, considero que, uma vez que os factores que estiveram na base das profundas alterações que tiveram lugar em Portugal e no império se estruturam ao longo de décadas, a gestão das suas consequências imediatas tinha de ser muito complexa e difícil. Tratava--se de substituir uma longa ditadura que não permitiu o desenvolvimento legal de qualquer contestação e simultaneamente encontrar soluções políticas para três guerras coloniais, postas em causa pelo próprio exército que as realizava, e de responder a pressões internas e internacionais no sentido de se conceder independência às colónias. Pode-se admitir que, se o contexto fosse outro, eventualmente, soluções diferentes das guerras que se seguiram em Angola e Moçambique pudessem ser evitadas, e talvez a instauração de regimes de partido único não se revelasse quase inevitável. Porém, os grandes interesses geoestratégicos, especialmente na África austral, num quadro de guerra-fria, o modo como os movimentos de libertação se estruturavam, a natureza e a evolução do próprio MFA português no período revolucionário, bem os recursos envolvidos, não terão permitido evolução diferente. Terá sido a descolonização possível.

Cabo Verde atribui algum significado especial ao 25 de Abril ou ignora a data?

O 25 de Abril representa para Cabo Verde o princípio do fim da sua condição de nação subjugada e a oportunidade para chegar à autodeterminação e à independência, reivindicada durante muito tempo. 25 de Abril é, de certa forma, também uma vitória dos cabo-verdianos que nas matas da Guiné, no arquipélago, em Portugal, na Holanda, em França, nos EUA e um pouco por todo o mundo, faziam pressão, com armas na mão ou na clandestinidade, para que o regime colonial-fascista de Salazar/Caetano caísse. Pelos sacrifícios que poupou à nação cabo-verdiana, ao encurtar-lhe a luta pela autodeterminação e pela independência, ganhou, também entre os cabo-verdianos, um significado muito especial.

Como vê Portugal de fora 40 anos depois da Revolução? Que balanço faz destas quatro décadas? O que melhorou e o que piorou em Portugal e no espaço lusófono?

Portugal fez, e está fazendo, um interessante percurso rumo ao desenvolvimento e à democracia plena. É claro que não é um percurso fácil, nem linear. Há altos e baixos, vitórias e reveses, mas o importante é aprender com a vivência e a experiência, aproveitando todas as oportunidades para consolidar as conquistas feitas. O Portugal de hoje não tem nada a ver com o Portugal de que nos lembramos do início da década de 70 do século passado. Progrediu muito e em muitas áreas e são positivos os esforços que estão sendo feitos, os sacrifícios que estão sendo consentidos em nome de um amanhã melhor e menos turbulento para as novas gerações. Quanto ao espaço lusófono, é uma construção que está sendo erguida. É fundamental que as bases e as estruturas sejam firmes e bem alicerçadas. Acredito que, no essencial, no espaço correspondente ao sonho imperial do Minho a Timor, melhorou muita coisa e pouca coisa terá ficado pior. Está-se lutando pela liberdade, pela democracia e pelo desenvolvimento com as armas possíveis e o objectivo de uma vida de paz, progresso e bem-estar está ao nosso alcance. O que de melhor está acontecendo é a renovação da esperança. O pior parece ter passado.

Causa-lhe admiração que recentemente os portugueses, entre Pessoa e Almada, por exemplo, tenham escolhido Salazar como o português mais notável de sempre?

As pessoas são tradicionalmente saudosistas. Por um lado, esse saudosismo poderia explicar o fenómeno. Mas há muito mais. A nova geração, gente com idade até aos 50 anos e que não sentiu na pele os horrores da ditadura, vive lado a lado com gente que, diante de problemas novos e de situações de alguma indefinição, não se cansa de lamentar, dizendo que dantes é que era bom e que "naquele" tempo é que havia ordem, progresso e pulso firme. No fundo, os mais velhos ficaram decepcionados com o que receberam: em vez da terra com leite e mel em abundância, foram confrontados com uma terra que exige esforço, sacrifício e lideranças competentes para que possa se transformar na terra prometida. As dificuldades, os sacrifícios e algum descrédito nas novas lideranças do país talvez possam justificar aquela distinção. De todo o modo, desconheço o contexto, o tempo, em que a escolha terá sido feita.

Com o fim do ciclo do império, como classifica o relacionamento de Lisboa com as suas antigas colónias?

Talvez seja necessário fazer uma breve retrospectiva histórica dessa relação, para melhor a enquadrar nesse percurso de pouco mais de 40 anos de vida independente das ex-colónias. Por mais de 500 anos, essas relações foram, como se sabe, profundamente violentas e traumáticas, porque baseadas na negação permanente do outro. Por conseguinte, esses escassos 40 anos de vida livre e independente, não serão suficientes para apagar da memória colectiva dos nossos povos, como que por um passe de mágica, toda a história de um relacionamento marcadamente desigual, conflitual, e traumático, de séculos. Trata- se aqui, me parece, de um processo histórico que requer o seu tempo, talvez muito tempo, para que se ultrapassem os traumas, se desfaçam os mitos e demais antagonismos , tanto individuais quanto colectivos. Mas, referindo-me mais concretamente à sua questão, diria que talvez seja necessário distinguir os dois níveis - bilateral e multilateral - nos quais se processa esse nosso relacionamento, que, definitivamente, não é nem linear, nem homogéneo. Será pois uma análise diferenciada, conforme a trajectória política e social de cada um deles.

Posso avançar-lhe dois exemplos paradigmáticos no relacionamento contemporâneo com Portugal que são os casos de Cabo Verde e de Angola, esse grande país irmão. É notório o excelente e privilegiado relacionamento, tanto a nível oficial/institucional quanto privado, que Cabo Verde mantém com Portugal desde 1975, data da nossa independência nacional, até aos dias de hoje, consubstanciado nos fortes laços de amizade e de cooperação existentes em quase todos os sectores da vida dos dois países e povos, como aliás os seus respectivos dirigentes não cessam de manifestar publicamente, como eu, pessoalmente, o fiz, por ocasião da minha primeira visita oficial a Portugal. Repare, contudo, que já não se pode dizer o mesmo das relações entre Angola e Portugal, que amiúde registam sérios desentendimentos, como os que apareceram há bem pouco tempo na comunicação social dos dois países. Como é óbvio, e como já referi acima, o relacionamento bilateral de Portugal, tanto com a Guine-Bissau, como com Moçambique e São Tomé e Príncipe, obedece à sua própria lógica e dinâmica e varia consoante os interesses e capacidades específicos de cada um dos nossos países. Mas, a nível multilateral, refiro-me concretamente à CPLP, procuramos colmatar as insuficiências a nível bilateral. E felizmente assim acontece. Nesse quadro, temos procurado imprimir uma dinâmica salutar, por forma a sermos cada vez mais fortes e coesos, pelo menos do ponto de vista estritamente político, em que a nossa intervenção, em determinadas questões, tem sido valorada. O número de países que vêm solicitando a sua adesão à essa organização, ou simplesmente pleiteando para um lugar nela como observadores, é disso uma prova indesmentível. Por isso acredito que estamos indo na boa direcção, apesar dos percalços que vão surgindo aqui e acolá, algo que considero natural nesse tipo de processo, sobretudo ainda em vias de consolidação organizativa, mas nada que não seja ultrapassável. O meu optimismo leva--me a dizer que esse relacionamento tem sido bastante satisfatório. Como diz o ditado, é caminhando que se faz o caminho.

A integração de Portugal na União Europeia é uma mais-valia ou dilui a importância diplomática de Lisboa?

Um político português estaria seguramente mais bem posicionado para responder à essa pergunta que o presidente da República de Cabo Verde. Mas o facto, devemos reconhecê-lo, é que foi graças à intervenção de um eurodeputado português, o Dr. Ribeiro e Castro, amigo de Cabo Verde, que hoje temos a excelente relação de cooperação com a União Europeia que resultou na assinatura do Acordo de Parceria Especial com esta instituição política, sem querer mencionar ainda os outros bons amigos que lá temos, como é o caso do presidente da Comissão, Dr. Durão Barroso. Isto para dizer que, para nós, em Cabo Verde, a diplomacia portuguesa na União Europeia tem sido, sem a menor dúvida, uma mais-valia. Aproveito, aliás, esta oportunidade para, uma vez mais, agradecer aos nossos amigos o apoio com que nos têm brindado no seio dessa instituição.

As relações de amizade, políticas e de cooperação entre Portugal e os novos países africanos de expressão portuguesa são as adequadas? O que se podia fazer mais substancialmente de uma forma diferente e determinante?

É evidente que elas nos têm servido, mas não plenamente, pois, como é consabido, o homem, por natureza, é um eterno insatisfeito. Essa insatisfação também se verifica ao nível desse relacionamento, que, muito embora já esteja a um nível bastante satisfatório, por alguns e não tanto por outros, pessoalmente, gostaria de vê- -lo a um nível muito mais elevado. Acho mesmo que constitui um dever nosso fazer muito mais ainda. Digo isto porque temos tudo para avançar com um relacionamento mais forte. Há riquezas materiais e humanas bastantes para darmos o salto qualitativo em prol do desenvolvimento das nossas nações e respectivos povos. Penso, por exemplo, na democratização da educação e do saber das nossas populações, na transformação da CPLP numa Comunidade de Povos, no franqueamento das nossas fronteiras aos cidadãos lusófonos, por exemplo.

Como vê a lusofonia enquanto projecto estratégico global? Faz sentido, tem pernas para andar...

Respondendo à sua pergunta de trás para a frente, diria que sim, a lusofonia faz sentido e tem pernas para andar. Aliás, eu sou um optimista relativamente à lusofonia, à Comunidade Lusófona, à CPLP, e tenho reiterado em diferentes momentos que fazer da CPLP uma comunidade de povos é mobilizadora o bastante para que, querendo, se consigam vitórias marcantes nos planos interno e externo. Veja que a lusofonia liga povos, culturas, organizações, mares e oceanos de quatro continentes, oito países, numa sinergia comum de mais de 500 anos, constituindo-se por isso no plano interno em instrumento de vital importância para o encontro de culturas e desenvolvimento da língua portuguesa, para o reforço da cooperação multidimensional e participada, e instrumento de apoio ao desenvolvimento, numa abrangência cada vez mais intensa e global. No plano externo, a lusofonia apresenta-se como valor multifacetado: é uma plataforma de comunicação garantida pela língua, um fórum de concertação político-diplomática, encerra factores estratégicos imprescindíveis para a participação plena na vida internacional dos tempos modernos, tais como economia, espaço de soberania, projecção de segurança, controlo de espaços geoestratégicos vitais, acesso a recursos, podendo alcançar uma intervenção mais global, especialmente vocacionada para o espaço africano e ser factor de influência na tomada de decisão não só ao nível regional, mas principalmente no contexto mundial. Se olharmos em retrospectiva para o que inicialmente norteou a construção deste importante espaço lusófono - a valorização e a defesa da língua portuguesa e a preservação de heranças históricas e culturais comuns - e se nos quedarmos atentos ao que a comunidade representa actualmente - teremos a noção que, muito mais que a união de povos num "transatlantismo linguístico comum" (no dizer de Adriano Moreira), do que uma simples projecção espacial da língua e história comuns, ou uma questão de tradição, a relação entre os estados membros está alicerçada num intenso relacionamento económico com forte expressão no comércio e no investimento, mas também numa parceria política significativa, facilitadora e potenciadora de uma afirmação crescente no contexto mundial.

A língua portuguesa é em sua opinião um activo estratégico para os países membros da CPLP?

Com certeza que é. Dados fiáveis confirmam que cerca de 250 milhões de pessoas comunicam em português (o que corresponde a cerca 10 720 000 km2 de território e 7 500 000 km2 de zonas económicas exclusivas em que a soberania se exerce em português, cobrindo cerca de 8% das terras habitadas do nosso planeta!). Ela é, por outro lado, a quarta língua mais falada no mundo e a oitava de comunicação na internet; é uma das três línguas mais faladas em África, um continente que cresce a olhos vistos, com o prenúncio de se tornar um continente do futuro... é também uma das línguas oficiais da Guiné Equatorial, de Timor-Leste e Macau, e é língua oficial em várias organizações internacionais, das quais se destacam a UE, o Mercosul, a UA, a CPLP, a União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), a Comunidade Económica dos Estados Unidos de África Ocidental (CEDEAO) e a SADC (embora me pareça que haja necessidade de se intensificar a sua utilização nos fóruns de trabalho). E os dados apontam ainda que com o tempo África venha a falar cada vez mais inglês, árabe e português. Por aí já pode ver que existem de facto vantagens competitivas interessantes para que este veículo de comunicação que é património comum de oito culturas complementares se traduza em expressivo peso quer político quer económico. Prevejo, no entanto, que, para se fazer do português uma língua de referência internacional, e para que ela se imponha como uma mais-valia no mundo do trabalho, facilitadora de acessos a novos mercados e novas oportunidades de negócio, o trabalho que se impõe ao nível dos estados-membros será árduo, mas possível. É preciso apostar recursos na promoção da aprendizagem do português, reforçar a cooperação no domínio da formação pedagógica dos professores da língua portuguesa, revigorar as acções no domínio da formação e promoção da língua particularmente nos Estados onde a situação da língua portuguesa é mais difícil, designadamente a Guiné-Bissau (com uma taxa de analfabetismo que ronda os 75%), e Timor-Leste (onde o português foi banido durante os 24 anos de ocupação indonésia). Neste momento, julgo que o interesse de colaboração entre os nossos países, a vários níveis e também em termos da promoção da língua portuguesa, vem, cada vez mais, da chamada sociedade civil - do meio académico, das ONG, dos profissionais e dos agentes culturais. Talvez pudesse e devesse haver, do lado das autoridades, mais empenho ou um maior esforço e continuidade nas acções. Mas, creio que tal procedimento poderá vir a ocorrer motivado, justamente, pelo maior conhecimento dos PALOPs e de Timor que está a acontecer a partir desses agentes da sociedade civil. Só na AME - Atlantic Music Expo - evento que se realiza em Cabo Verde (2.a edição), estiveram, este ano, 50 agentes culturais brasileiros, com reportagens sobre o evento e a participação brasileira em jornais online de grande acesso.

A língua Portuguesa, sendo o elemento fundador da CPLP, o sentimento de pertença das pessoas, incluindo as autoridades, à comunidade, é essencial e pode ser um importante activo para acções de promoção e de valorização deste nosso património colectivo que é a língua portuguesa.

Em Junho há mais numa cimeira da CPLP, desta feita em Díli. O ponto-chave da agenda é a adesão da Guiné Equatorial. É a favor ou contra essa adesão plena e porquê?

A próxima Cimeira da CPLP a ter lugar na cidade de Díli, sendo uma oportunidade para os dirigentes dos países que integram a organização, passarem em revista questões que interessam aos respectivos povos e à organização, debruçar-se-á também sobre a proposta de adesão Guiné Equatorial à CPLP, no sentido de deixar a condição de membro observador para adquirir a de membro de pleno direito.

Como sabe a questão tem-se revestido de alguma dificuldade e até polémica. A Guiné Equatorial não é historicamente um país lusófono; em termos institucionais, não preenchia determinados requisitos considerados essenciais para a adesão a CPLP como membro de pleno direito.

Assim, decidiu-se que o país deveria cumprir um certo número de requisitos, constantes de um roteiro aprovado pela Cimeira anterior, para que, eventualmente, pudesse ser aceite, enquanto membro de pleno direito, na comunidade.

Na próxima cimeira proceder-se-á à ponderação do caminho percorrido - e defendemos que ela deve ser objectiva - e uma posição será adoptada, tendo em conta nomeadamente a avaliação que será apresentada pelos ministros dos Estrangeiros. Contudo, deve-se referir que, para além dessa avaliação, num quadro em que as decisões são adoptadas por consenso, outros elementos serão tidos em conta, como a necessidade de Cabo Verde falar a uma só voz.

Como se explica que tantos países não falantes do português queiram aderir á organização?

Talvez seja porque vêm que a nossa organização, apesar das suas próprias dificuldades, vem trabalhando com seriedade. Que a nossa organização funciona com a normalidade institucional requerida.

Os seus órgãos directivos reúnem-se com a periodicidade regulamentar exigida e as suas deliberações, em princípio, têm sido respeitadas e levadas a cabo.

A nível diplomático, por exemplo, tem tido uma concertação de posições sobre muitos dos grandes temas internacionais, de alguma relevância, o que lhe confere prestígio e visibilidade.

Existe, nos domínios da cooperação económica, comercial e financeira, alguma dinâmica digna de registo. As afinidades culturais entre os seus membros têm, também, ajudado imenso nessa aproximação e a conferir uma projecção, para além do facto de nos entendermos na mesma língua Esse poderão ser, acredito, atractivos para que alguns países não falantes do português peçam para aderir à nossa comunidade, sem esquecer uma realidade hodierna que é de disputa de grandes espaços e, ainda, a consciência de que será mais eficiente a promoção e defesa de nossos interesses pela via de integração e articulação em espaços e "territórios" mais alargados.

Os revolucionários que fizeram o 25 de Abril podem olhar com orgulho para a democracia que hoje existe no seu país?

A democracia é uma construção que, eventualmente, jamais será completa. O sonho da democracia plena, perfeita, de um governo do povo e para o povo, pode obnubliar as conquistas que contenham, em algum grau, imperfeições. Mas as sociedades humanas dificilmente conseguirão erradicar completamente as imperfeições humanas. Daí resulta que os sistemas humanos, apesar dos muitos esforços, não sejam perfeitos, acabados. Entre o sonho da democracia plena, perfeita, e a realidade do dia-a-dia, há um pequeno fosso que deve convocar todos para a sua redução e/ou eliminação. Mas já a comparação entre a situação que impulsionou os revolucionários de Abril para a acção e a situação hoje prevalecente, só pode ditar um sentimento de profundo orgulho. Não há que embandeirar em arco e dormir à sombra da bananeira, considerando estar tudo feito. Orgulho sim, por muitas "coisas bonitas" feitas, mas não enterrar as armas. Haverá ainda muito por fazer. É preciso maior respeito pelo diferente e pela diferença, mais solidariedade em relação aos desvalidos da sorte, muito maior esforço para atenuar desigualdades sociais e assimetrias regionais irrazoáveis, muito mais investimento em matéria de cultura democrática, de "vontade para a Constituição", diria. Mas que os revolucionários que fizeram o 25 de Abril têm motivos de sobra para estarem orgulhosos do salto qualitativo que impulsionaram, é uma verdade inquestionável.

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publicado às 09:59